Inesquecível: A competência dos Stones em Houston
Enfim, 76!
Foto: Jacob Power
Há 14 anos, a cidade de Houston esperava pelos Rolling Stones, uma espera que começou após o show único pela turnê do álbum "A Bigger Bang", em 1º de dezembro de 2005, no Toyota Center. Para matar a saudade de um grande número de fãs, os Stones retornaram com um show no NRG Stadium pela "No Filter", em 27 de julho de 2019.
A banda de abertura na cidade texana foi o Bishop Gunn. O quarteto transita entre o blues rock e o country com maestria. Uma escolha mais adequada para a plateia dos Stones do que o ato de abertura do show anteiror, Des Rocs.
O primeiro show de Mick Jagger com 76 anos de idade começou com "Jumping Jack Flash", ironicamente, a última a ser tocada durante a passagem anterior da banda pela cidade. "Let's Spend The Night Together" voltou a dar as caras após "You Got Me Rocking" se tornar a segunda da noite durante o show na Filadélfia. Mesmo trocando parte da letra, Mick Jagger deu uma já esperada grande performance e voltou a apresentar ótima forma vocal, assim como Keith Richards nos backing vocals ao lado de Bernard Fowler, Sasha Allen e Chuck Leavell. A "No Filter" em 2019 teve algumas das melhores versões do clássico de 1967 nos últimos 7 anos.
Os primeiros três números nunca são anunciados, basta a banda começar a tocar, mas em Houston, enquanto Ronnie Wood trocava de guitarra e Mick se livrava de seu terno, Keith apreciava algumas tragadas, o que continuou mesmo quando todos já estavam prontos para executar a música seguinte, algo que aparentemente foi levado com bom humor por todos. Com a espera ficando para trás, “Tumbling Dice” entoou no NRG Stadium com uma rara aparição do verso “women think I’m tasty”.
“Nós fomos a primeira banda a tocar ao vivo aqui.” – Mick Jagger
Uma música que não chega a ser uma raridade por ter aparecido com frequência em turnês anteriores, mas que tem sua falta sentida por alguns fãs na “No Filter” é “Out Of Control”. As aparições da faixa de 1997 na turnê que coloca os Stones na estrada desde 2017 foram mínimas, mas para os Estados Unidos, a música retornou ao set pela primeira vez em solo norte-americano desde a “Zip Code Tour”, onde era um número frequente. “Out Of Control” colocou o estádio inteiro no bolso com uma forte atmosfera guiada pelo grave do baixo de Darryl Jones. Mesmo para os fãs mais puristas que esperavam clássicos pelo menos vinte anos mais velhos, a performance da banda certamente não decepcionou. É o arena rock dos Stones em sua melhor forma.
A vencedora do song vote foi “Doo Doo Doo Doo Doo (Heartbreaker)”, continuando com a atmosfera de arena rock dos Stones. O clássico do álbum “Goats Head Soup” apareceu no setlist pela primeira vez desde 2017, quando a banda tocou no Telia Parken, em Copenhagen, na Dinamarca, não aparecendo nem mesmo durante a turnê britânica, em 2018. O wah-wah de Ronnie Wood continuou a trabalhar, mas – infelizmente – aparecendo menos durante “Heartbreaker”.
Mick agradeceu ao público por terem comparecido ao show mesmo com a mudança de data em abril, antes de dominar a plateia em “You Can’t Always Get What You Want", a segunda longa do show em Houston, que teve uma das mais lindas versões do clássico em 2019. Charlie Watts esbanjava classe em sua bateria, enquanto Wood levava a plateia à loucura com mais um de seus grandes solos. Outro momento elétrico durante a faixa do “Let It Bleed” foi o “double-time”, evocando o espírito da música gospel norte-americana no NRG Stadium.
Em seguida, a banda desceu até o palco B para o momento de intimidade em um estádio com mais de 45 mil fãs enlouquecidos. O set acústico começou com Jagger anunciando: “nós não temos uma música chamada ‘Sweet Texas’, mas temos uma chamada ‘Sweet Virginia’”. Ainda na intimidade com a plateia, os Stones seguiram o show com “Dead Flowers”, momento em que os quatros telões se ascendem, diminuindo o sentimento de que um estádio poderia ter a atmosfera de um pub, e retornando lentamente ao espetáculo de custo milionário que é o concerto da Maior Banda do Mundo. Ambos os clássicos acústicos foram interpretados com competência pelos rapazes.
“Sympathy For The Devil” já foi de tudo na “No Filter”. Chegou a ser a música que abre o show; já retornou ao seu posto dos anos anteriores à turnê, quando aparecia próxima ao fim do concerto; também apareceu após o set de Keith Richards, depois ter funcionado tão bem no início do concerto. Para a turnê norte-americana, a faixa que abre o “Beggars Banquet” é a primeira das duas últimas músicas da primeira parte do concerto, a única com a alguma chance de raridades. Começando apenas com Charlie, Darryl e Chuck, a composição com influência brasileira toma conta do NRG Stadium, que viu um Mick Jagger elétrico, com direito a ajuda até mesmo na percussão com um par de maracas, lembrando os dias de 1964, quatro anos antes do clássico ser escrito, quando ainda era comum ver Mick com instrumentos de percussão com certa frequência em shows dos Stones.
Adaptando a letra de “Memphis” para “Texas”, Jagger fez o público cantar com ainda mais fervor em “Honky Tonk Women”, número sempre seguido pela apresentação da banda e pelo set de Keith Richards. Mas antes de Richards começar sua parte como vocalista, o músico desejou feliz aniversário a Mick Jagger, o frontman completou 76 anos no dia anterior ao show, em 26 de julho. Com sua muito bem amplificada Gibson, Richards acertou onde errou no concerto anterior, na Filadélfia, uma pena Keith ter mudado a direção do microfone próximo ao fim da música, fazendo com que sua voz ficasse na maior parte do tempo em desvantagem em relação a Bernard, Sasha e Chuck. “Before They Make Me Run” não parou de roubar a cena no set de Keith durante o show em Houston. Apresentando uma voz pra lá de sólida, o guitarrista voltou a estar em pé de igualdade com os backing vocals. Esta performance lembrou o vigor da faixa do “Some Girls” durante o show em Bogotá, em 2016 pela “Olé Tour”, até superando-a em muitos aspectos.
"Antes de continuar, eu gostaria de desejar feliz aniversário ao senhor Jagger por ontem." – Keith Richards
“Miss You” manteve a vibração no estádio, nunca falhando em criar uma das atmosferas mais vibrantes da noite. No palco, atiçando uma plateia de todas as idades, estava um senhor de 76 anos cuja desenvoltura é de um rapaz décadas mais jovem. Enquanto Mick demonstrava vigor físico, Darryl Jones solava como se não houvesse o amanhã durante o maior groove da noite. Tim Ries não ficou para trás com sua performance altamente melódica, dando um pouco de romantismo à disco music.
Quando a gaita de Mick Jagger começa a soar, após a improvisação de tom tenso feita pelos demais Stones, os fãs já sabem o que está por vir. “Midnight Rambler” foi o soco na cara de sempre, o Jagger que cantou naquela noite é o Jagger que todo fã espera escutar ao assistir os Rolling Stones, performance e voz intactos! Charlie Watts não perdeu tempo durante a ópera-blues e guiou a banda para a parte mais pesada da música. Após uma improvisação com “Hellhound On My Trail”, Mick mostrou que o vocalista que não entendia nada sobre tempo e compassos ficou no passado. O mesmo pôde ser observado em quase toda a “Paint It Black” daquela noite, mas o responsável pela euforia dessa vez foi Richards, dono de uma das mais atemporais introduções da história do Rock and Roll. Em seguida Charlie Watts entrou em cheio, talvez pegando alguns marinheiros de primeira viagem de surpresa, tamanha foi a força com a qual o baterista deu início à sua performance – vale lembrar que faltam apenas dois anos para Charlie completar 80 anos de idade.
“Faz 55 anos desde a primeira vez em que tocamos no Texas.” – Mick Jagger
A festa foi chegando ao fim com dois clássicos obrigatórios, que juntos, formam uma combinação explosiva. Com seu sorriso boêmio, Keith Richards se aproximou do público durante as notas imortais de “Start Me Up”. Curiosamente, o clássico de 1981 é um dos que sofrem um grande número de críticas por estar no set por tantos anos, impedindo que outros clássicos ou raridades possam fazer parte do show. Realmente não dá para agradar todo mundo, mas quando a faixa do “Tattoo You” é tocada em estádios pelo mundo, a reação do público parece ser positivamente unanime. Já “Brown Sugar” parece não sofrer tantas críticas em relação à sua permanência no show, esta, ainda mais do que “Start Me Up”, é sem dúvida uma das músicas mais esperadas. O clássico que começou com percalços durante o primeiro ano da “No Filter”, conseguiu se reerguer para levar ao público uma experiência inesquecível. Mesmo tendo sua duração reduzida nos últimos anos, “Brown Sugar” não decepciona! E como decepcionar? As interpretações de Karl Denson para o solo do clássico são espetaculares. Energia e interação máxima com a plateia: Um final excelente para o show antes do bis.
O setlist se completa de forma apoteótica, a começar por “Gimme Shelter”. O clássico absoluto é aplaudido pelo lotado NRG, os quatro Stones são sempre reverenciados. Mas como os fãs sabem, a banda de apoio sofreu uma mudança em 2016. Durante a Zip Code Tour (2015), o país norte-americano voltou a se impressionar com os dotes vocais da incrível Lisa Fischer, mas em 2019, Sasha Allen foi a responsável pela tarefa de cantar a parte mais impactante do clássico de 1969. Mesmo estando apenas na segunda leva de shows com os Stones pelos Estados Unidos, Sasha já é aplaudida antes mesmo de chegar ao palco B. Os fãs conquistados no meio stoneano não se encantaram com Sasha por pouco, a cantora sempre mostrou competência no palco, mas durante a leg norte-americana da “No Filter”, Allen entregou as que talvez sejam suas melhores performances na ponte de “Gimme Shelter”. Em Houston não foi diferente, a cantora pareceu se sentir tão à vontade, que mostrou ter aprendido algumas coisas sobre presença de palco com Mick Jagger.
“(I Can’t Get No) Satisfaction” não chega mais aos 10 minutos de duração, mas isso não é estritamente necessário para que a banda impressione o público pagante e até mesmo os que escutam o show do lado de fora do estádio. Mesmo estando com a voz em forma durante o show em Houston, no último número, Mick não arriscou algumas das notas mais altas, deixando-as para os backing vocals, o que não fez com que a apresentação caísse, já que a banda estava concentrada e entregando uma boa versão do clássico.
Em suma, o show de Houston foi uma combinação de outras grandes apresentações da banda em 2019, no sentido de que Mick estava com o vocal em forma e afinado, Richards estava focado, Charlie apresentou uma performance impressionante e Ronnie segue sendo a “bola de energia” – nas palavras de Keith Richards – que todos conhecemos com sua competência em solos e bases. A espera de Houston realmente valeu a pena.
Foto: Jacob Power
Setlist:
1. Jumping Jack Flash 2. Let's Spend The Night Together 3. Tumbling Dice 4. Out Of Control 5. Doo Doo Doo Doo Doo (Heartbreaker) (vote song) 6. You Can't Always Get What You Want 7. Sweet Virginia (palco B) 8. Dead Flowers (palco B) 9. Sympathy For The Devil 10. Honky Tonk Women 11. Slipping Away (Keith) 12. Before They Make Me Run (Keith) 13. Miss You 14. Midnight Rambler 15. Paint It Black 16. Start Me Up 17. Brown Sugar
BIS 18. Gimme Shelter (Mick e Sasha) 19. (I Can't Get No) Satisfaction
Foto: The Rolling Stones